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COM JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE, JUÍZES PASSAM A DITAR POLÍTICAS PÚBLICAS DO SETOR
17/08/2018

O Tribunal de Justiça de São Paulo julgou, em um ano, mais de 40 mil casos tendo como objeto a saúde. Da falta de um remédio simples em um posto de saúde público à autorização para uma complexa cirurgia fora do país, juízes e desembargadores lidam diariamente com enorme variedade de pedidos. Estão permanentemente no fio da navalha ao terem de decidir entre o direito fundamental à vida e os custos que esse direito impõe ao Estado e à sociedade.

Na Seção de Direito Público, foram julgados 14 mil recursos. Quase 10 mil deles se referiam a pedidos de medicamento, tema que em 2017 ocupou o quinto lugar entre as maiores demandas da seção. Em 2016, esses pedidos ocuparam o terceiro lugar no ranking de temas mais discutidos.

A Seção de Direito Privado fechou 2017 com mais de 25 mil julgamentos referentes a planos de saúde, que alcançaram o primeiro lugar entre os assuntos mais julgados, à frente de processos sobre contratos bancários e promessas de compra e venda de imóveis. Na maioria dos processos os usuários dos planos de saúde reclamam da recusa de pagamento de próteses, cirurgias e altos custos para internação de emergência; dos índices de reajuste das mensalidades; de reajustes por faixa etária, principalmente aos 59 e 60 anos. Outro problema comum é o encarecimento do plano de saúde por sinistralidade. Na prática, quanto mais a pessoa usa os serviços a que tem direito, mais prejudicada ela é.

Pesquisa do Observatório da Judicialização da Saúde Suplementar, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, elencou os principais motivos das ações contra planos de saúde, em seleção de quatro mil decisões de 2013 e 2014 de segunda instância do TJ-SP e concluiu que em 92% dos acórdãos foi dada razão ao usuário, sendo que em 88% dos casos o pleito foi integralmente acolhido e em outros 4% a pretensão foi acolhida em parte. Em 8% dos julgados a decisão foi totalmente desfavorável ao cidadão.

Presidente da Associação Nacional das Administradoras de Benefícios (Anab), criada em 2010 e que reúne administradoras de planos coletivos por adesão, o advogado Alessandro Acayaba de Toledo afirma que há distorções dos dois lados e que o excesso de regulação do setor gerou um efeito reverso, avolumando as discussões no Judiciário. Acayaba afirma também que as condenações judiciais de determinados litigantes são repassadas a todos os usuários do plano coletivo. “Todas as despesas do plano, como os sinistros, somados à inflação médica, são suportadas pelas operadoras de saúde. Toda vez que, por força judicial, se traz uma despesa imprevisível, isto gera um desequilíbrio econômico financeiro em todo o contrato, obrigando a operadora a lançar esta inesperada despesa no cálculo atuarial, tornando-se um agravante para o reajuste.”

Para o advogado que preside a Anab, vive-se um paradoxo no país: há excesso de regulamentação, destinado apenas a alguns setores da cadeia, e sobra reclamação dos usuários. Outro dado interessante é o atendimento dispensado aos usuários. “Normalmente, se você sente dor e liga para o plano pedindo ajuda, o encaminhamento dado é para que você pesquise a lista de médicos que a operadora disponibiliza ou, no caso de seguro, que vá em busca do médico da sua escolha. O usuário, em muitos casos ou na sua grande maioria, nem sempre faz a melhor escolha ou seleciona o médico mais adequado para avaliar sua enfermidade. A partir daí o paciente se torna, sem culpa, um consumidor do plano com um cartão sem limites. Ao final, a conta volta na forma de reajuste. É preciso que este tipo de atendimento seja modernizado e o usuário seja acolhido como paciente logo no primeiro atendimento”, afirma Acayaba.

Acessa SUS

O estado de São Paulo gasta mais de R$ 1 bilhão ao ano por força de condenações judiciais em matéria de Saúde Pública, de acordo com dados da Procuradoria-Geral do Estado. União, estados e municípios, somados, gastam R$ 7 bilhões ao ano para cumprir decisões judiciais, segundo o Ministério da Saúde.

De acordo com análise do Tribunal de Contas da União, a judicialização da saúde provoca a realocação emergencial de recursos, descontinua o tratamento de pacientes regulares, ameaça os gestores pelo eventual descumprimento das decisões judiciais e torna possível que os laboratórios aumentem os preços de medicamentos na hipótese de aquisição emergencial, sem licitação, para o cumprimento das decisões judiciais.

Em fevereiro de 2017, o estado de São Paulo criou em esforço conjunto com a Secretaria Estadual da Saúde, o Tribunal de Justiça, a Defensoria Pública e o Ministério Público um programa para desjudicializar casos desnecessários. O Acessa SUS tem o objetivo de garantir, à população, cobertura de medicamentos e tratamentos antes que os pedidos cheguem à mesa do juiz.

Por meio dele, as pessoas que, diante da recusa de atendimento em um posto de saúde, procuram a Defensoria Pública ou o Ministério Público com suas receitas médicas agora são encaminhadas a uma comissão técnica do governo, que estuda cada caso e avalia se ele poderá ser atendido. A comissão, que no momento só funciona na capital e na Grande São Paulo, tem apresentado resultados positivos. O atendimento é prestado no Ambulatório Médico de Especialidades Maria Zélia, na capital.

O defensor público de São Paulo Alvimar Virgílio de Almeida conta que os acordos firmados em 2017 pelo Acessa SUS diminuíram em 70% as ações que a Defensoria Pública de São Paulo costumava propor no Judiciário. De fevereiro a junho de 2017, apenas 17% dos pedidos que chegaram ao órgão foram judicializados. “Nossa linha condutora é dar respostas a esses problemas sem necessariamente acionar o Poder Judiciário”, afirma Almeida.

No caso de medicamentos e insumos não contemplados pelo SUS, o paciente é orientado a verificar, junto ao médico, a possibilidade de substituição por outro remédio com equivalência terapêutica já disponível na rede pública. Se a substituição não for possível, é formalizada a solicitação administrativa. Os técnicos da Secretaria de Saúde fazem a avaliação dos pedidos em até 30 dias; nos casos de urgência clínica, o prazo é de 72 horas. O programa oferece uma espécie de consultoria, orientando sobre as possibilidades terapêuticas disponíveis no SUS e evitando, desta forma, ações e condenações judiciais.

Segundo a Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo, o número de condenações judiciais sofridas para entregar medicamentos e insumos a pacientes caiu 16% em 2017, após a adoção do programa (veja quadro acima). Com a redução, diz a pasta, os cofres públicos economizaram R$ 206 milhões no período de um ano.

Esses comitês vão elaborar pareceres para subsidiar o juiz na hora da decisão. O banco de dados nacional ficará disponível no site do CNJ, com notas técnicas, análises de evidências científicas e pareceres técnico-científicos consolidados emitidos pelos NAT-Jus, pelos Núcleos de Avaliação de Tecnologia em Saúde (NATs) e pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia no SUS (Conitec), além de informações da biblioteca do Centro Cochrane do Brasil (instituição sem fins lucrativos) e outras fontes científicas.

O conselheiro do CNJ Arnaldo Hossepian, que supervisiona o Comitê Nacional da Saúde, afirma que os esforços visam a evitar demandas judiciais abusivas, impedindo que haja uma desestruturação da cadeia. “A ideia é fazer com que a prestação jurisdicional seja concedida de forma criteriosa. De forma alguma pode servir de instrumento para a obtenção de ganhos ilícitos ou de fonte de patrocínio de medicamentos ainda em teste em outros países. Há que se afastar a utilização predatória do Poder Judiciário”, explica. “O Judiciário é o desaguadouro daquilo que o advogado e o profissional de medicina entenderam que era o caso de se pleitear. Que o Judiciário possa deliberar sabendo se aquilo de fato é compatível”, complementa.

Desde novembro de 2017, os NATs estão sendo implantados pelos Tribunais de Justiça. Já existem, ao menos no papel, em quase todos os 27 estados. Os NATs, com suas equipes formadas, devem disponibilizar pareceres técnicos isentos e de alta qualidade, em cerca de 50 temas mais incidentes no Judiciário. O intuito é que os juízes, antes de decidir, consultem essas informações, baseadas em medicina de evidência.

Em São Paulo, as capacitações ocorrem no Centro de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio Libanês. Nos próximos três anos, esse hospital investirá, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde, cerca de R$ 15 milhões na estrutura do banco de dados do CNJ. O conselho também promoverá curso de capacitação a distância de magistrados de todo o país, oferecido em plataforma digital.

No Tribunal de Justiça de São Paulo, o núcleo técnico em saúde foi criado em 17 de novembro de 2017, pela Portaria 9.469/2017. Em maio de 2018, todavia, ele ainda estava em fase de estruturação.

Experiência exitosa

O juiz João Baptista Galhardo participou do embrião do programa Acessa SUS. No início de 2009, após ter atuado por 15 anos na 2ª Vara Criminal de São Carlos, transferiu-se para a Vara da Fazenda Pública de Araraquara. Encontrou grande número de ações sobre pedidos de medicamentos, órteses, próteses e procedimentos cirúrgicos.

Em sua comarca, conta, quase tudo era negado pelo poder público de forma administrativa – os pedidos dos pacientes sequer eram respondidos. “Havia consenso na cidade de que somente com ação judicial é que o sujeito conseguiria obter o que precisava. Era ação para tudo quanto era coisa, até para aspirina”, diz Galhardo.

Segundo o juiz, grande maioria dos processos era deflagrada pela Defensoria Pública, que, por sua vez, gastava quase toda sua energia para atender esses casos. Havia muitos pedidos de medicamentos padronizados e inseridos no rol do SUS, mas o cidadão não conseguia obter o medicamento senão por meio da ação judicial.

Ele se reuniu com agentes públicos da área da saúde e da área jurídica, bem como com a Defensoria, para buscar uma solução. Alguns municípios já contavam com algum tipo de organização por parte dos agentes públicos, que, antes da liminar, avaliavam o caso e procuravam dar solução para o problema. Galhardo usou a ideia, com algumas adaptações, e criou-se em Araraquara a Comissão de Avaliação de Pedidos de Medicamentos e Procedimentos, composta de membros das secretarias municipal e estadual de Saúde e representantes das Procuradorias do estado e do município. Ela analisa todos os pedidos de cidadãos e busca uma solução entre as alternativas que o SUS oferece. “Tivemos uma queda significativa do número de processos. Hoje o que temos são casos que a pessoa não conseguiu resolver por meio da comissão. Principalmente casos de oncologia, para os quais o SUS ainda não tem muitas alternativas.”

Com a criação da comissão, a quantidade de processos caiu 70% entre 2010 com 2011 e se mantém no mesmo nível até hoje. Segundo Galhardo, as soluções alternativas costumam ser aceitas. “A grande maioria dos casos é deflagrada pela Defensoria Pública. E este órgão, aqui em Araraquara, concorda com a proposta do SUS 80% das vezes”, diz.

O juiz conta que geralmente há recurso da parte autora quando esta tem advogado particular. Nestes casos, há outro fator que pondera: “Quando é advogado particular e é demonstrado que a parte não se enquadra como hipossuficiente, não concedo o pedido para que o SUS pague o tratamento.” Em alguns casos o tribunal mantém sua decisão e, em outros, a modifica, diz.

Galhardo conclui que o lado positivo da judicialização é que tira o poder público da inércia. “Os tratamentos acabam sendo incorporados, como ocorreu com o coquetel do HIV e o canabidiol. Mas ela não pode virar uma panaceia. Já foram incorporados até florais. Daqui a pouco vão dizer que macumba cura dor nas costas e vão querer que o SUS pague o tratamento! É importante ter cautela.”

A judicialização da saúde pública, diz, está muito ligada à desorganização do sistema. “O estado e os municípios não se comunicam adequadamente, há ações em que os dois acabam entregando o mesmo medicamento.”

Para Galhardo, ainda prevalece entre seus pares a ideia de que o juiz não tem obrigação de buscar provas no processo, pois não é parte: “Muitos acham que esses núcleos ou comissões tendem a ser sempre favoráveis ao poder público e não têm isenção”, afirma. “Também acham que o juiz não deve consultar ninguém, sendo exclusiva dele a tarefa de decidir se concede ou não a liminar, até porque a ação sempre vem acompanhada de uma receita médica indicando que aquele medicamento é o que deve ser concedido e que o juiz não pode mudar o pedido do autor”, explica.

Jurisprudência em São Paulo

A maioria das ações da área de saúde que chega à Seção de Direito Público, como pedidos de tratamentos, medicamentos e ressarcimento por procedimentos que não são oferecidos pelo SUS é julgada favoravelmente ao indivíduo. Sem conhecimento técnico para avaliar a existência de tratamentos mais baratos ou que estejam na lista do SUS e tenham o mesmo efeito, na maioria das vezes, os juízes preferem não contrariar o laudo do médico da parte.

Os desembargadores entendem também que, como o direito à saúde está previsto nos artigos 196 e 197 da Constituição Federal, não pode ser negado. O desembargador Ricardo Dip, ex-presidente da seção, explica que é uma situação delicada para os juízes, que precisam decidir logo em sede de liminar e sem contato com o paciente. “Como é que vamos negar isso se as contestações apresentadas pelas fazendas ainda por cima são genéricas?”, critica. “É loucura um país colocar nas suas leis o direito à saúde. O Brasil colocou e como cláusula pétrea! Há uma avalanche correspondente”, resume.

Assim como seus colegas de seção, Dip leva em conta o laudo médico anexado ao processo. E costuma citar o Código de Ética Médica, aprovado pela Resolução 1.931/2009: “O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir que quaisquer restrições ou imposições possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho. As relações do médico com os demais profissionais devem basear-se no respeito mútuo, na liberdade e independência de cada um, buscando sempre o interesse e o bem-estar do paciente”.

Normalmente, a defesa do estado argumenta restrições orçamentárias; conflitos de interesses individual e coletivo; ofensa à lei de responsabilidade fiscal; não padronização da medicação no sistema de saúde; e até mesmo possibilidade de cometerem crime de descaminho.

O ex-procurador-geral do estado de São Paulo Elival da Silva Ramos reconhece que em ações de pedidos de medicamentos o Estado sempre é derrotado, até porque, devido à “urgência” do caso, muitas vezes o mérito não é julgado e os remédios são concedidos por meio de liminares. Para o procurador, que se aposentou em março de 2018, ao determinar que o Estado forneça medicação que não está na lista do SUS, o Judiciário está guiando a política de saúde pública, o que não lhe cabe.

Elival Ramos tem a cifra atualizada: São Paulo gasta mais de R$ 1 bilhão com o cumprimento de ordens judiciais na área de saúde. Analisando onde esse dinheiro foi investido, afirma, é possível constatar que a judicialização é mais comum em regiões mais ricas do estado, enquanto nas mais pobres faltam hospitais e saneamento básico. “Quando o Judiciário manda fornecer insulina importada significa que, do orçamento da saúde, uma parte vai ser destinada para isso. No Brasil, não desenvolvemos a vacina contra a dengue, mas temos fornecimento de medicamentos altamente sofisticados em juízo, o que é contraditório”, afirma.

Para ele, o ativismo se dá porque os juízes só estão lendo a primeira parte do artigo 196 da Constituição. O artigo inteiro diz que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” e que “esse direito é assegurado mediante políticas públicas”. Então, reforça, o direito à saúde é condicionado a uma política pública que o torne concreto, e quem implementa essa política é o poder público, a administração, seguindo a legislação. Para o procurador aposentado, o Judiciário é hoje o controlador das políticas públicas sociais no Brasil. Mas não deveria ser, pois não é o formulador de projetos e nem foi eleito para isso.

Soluções superiores

Estão no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça casos que prometem dar solução a algumas das controvérsias. No STJ, a 1ª Seção, em abril de 2018, concluiu o julgamento do REsp 1.657.156, sob o rito dos recursos repetitivos, e estabeleceu critérios para que o Poder Judiciário determine o fornecimento de remédios fora da lista do SUS.

Foi decidido que o Judiciário poderá determinar ao poder público o fornecimento de medicamentos não incorporados do SUS desde que presentes, cumulativamente, os seguintes requisitos: laudo do médico do paciente comprovando que o medicamento é imprescindível e que os medicamentos fornecidos pelo SUS são ineficazes para o tratamento pretendido; demonstração da incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; e existência de registro do medicamento na Anvisa.

Além de fixar esses três critérios, a decisão do STJ determinou que, depois de transitada em julgado a decisão em cada caso concreto, o Ministério da Saúde e a Comissão Nacional de Tecnologias do SUS fossem comunicados para estudos sobre a viabilidade de os medicamentos pleiteados serem incorporados pelo SUS. Os critérios fixados só serão exigidos nos processos judiciais distribuídos a partir dessa decisão.

No STF, ainda aguarda decisão o Recurso Extraordinário 566.471, que discute se o Estado deve fornecer medicamentos de alto custo que estão fora da lista do SUS por meio de decisão judicial. Já o RE 657.718 questiona a distribuição e comercialização de medicamentos sem registro na Anvisa. O julgamento dos dois recursos, com repercussão geral reconhecida, foi interrompido, em setembro de 2016, por pedido de vista do ministro Teori Zavascki, morto em janeiro de 2017 e sucedido por Alexandre de Moraes, que ainda não preparou o voto.

A tese apresentada pelo relator, ministro Marco Aurélio, é no sentido de que o Estado pode ser obrigado a fornecer remédios de alto custo, desde que comprovadas a imprescindibilidade do medicamento e a incapacidade financeira do paciente e de sua família para a aquisição. O ministro também votou para que medicamentos não registrados no Brasil, mas devidamente testados e certificados no exterior possam ser fornecidos pelo poder público.

Votaram até o momento Marco Aurélio, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin. Barroso disse que o tema certamente é um dos mais complicados em análise no tribunal. No caso da demanda judicial por medicamento não incorporado pelo SUS, inclusive quando de alto custo, concluiu que o Estado não pode ser, como regra geral, obrigado a fornecê-lo.

“Não há sistema de saúde que possa resistir a um modelo em que todos os remédios, independentemente de seu custo e impacto financeiros devam ser oferecidos pelo Estado a todas as pessoas. É preciso, tanto quanto possível, reduzir e racionalizar a judicialização da saúde, bem como prestigiar as decisões dos órgãos técnicos, conferindo caráter excepcional à dispensação de medicamento não incluído na política pública”, afirmou.

Com relação ao fornecimento de remédios não registrados pela Anvisa, Barroso registrou que, como regra geral, o Estado não deve ser compelido ao fornecimento por decisão judicial, salvo na hipótese de demora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido — prazo superior a 365 dias.

O ministro Luiz Edson Fachin seguiu a mesma linha de Barroso e propôs parâmetros que devem balizar os pedidos de medicamento, sendo dois diferentes da lista de seu colega. Um deles é a indicação do medicamento no laudo médico por meio das denominações comuns brasileira (DCB) ou internacional (DCI). O outro é a justificativa da inadequação ou da inexistência do remédio ou tratamento na rede pública.

Fachin propôs a tese: “No âmbito da política de assistência à saúde, é possível ao Estado prever, como regra geral, a vedação da dispensação do pagamento, do ressarcimento ou do reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa”.

Saúde pública

Reynaldo Mapelli Júnior é promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo e moveu uma ação civil pública coletiva em que conseguiu que fumantes com doença pulmonar obstrutiva crônica (parecida com enfisema pulmonar) passassem a ser tratados de graça. Na época, o SUS excluía fumantes do atendimento. O protocolo clínico foi homologado em São Paulo. Depois foi incorporado ao SUS em todo o país, sem necessidade de novas ações judiciais individuais.

Entre as funções do MP está a fiscalização do sistema de saúde pública. O órgão pode dar uma recomendação para que o gestor resolva o problema, propor um Termo de Ajustamento de Conduta e, em casos mais graves, ajuizar uma ação civil pública. O MP tem legitimidade para ações individuais também. Conforme Mapelli, entre as demandas individuais estão pedidos de medicamentos, tratamento para a saúde mental, para vício em drogas e cirurgias de emergência.

Na visão de Reynaldo Mapelli, os juízes devem ter mais cuidado na apreciação dos pedidos. Ele sugere que, durante a instrução, ouçam testemunhas e busquem informações de órgãos oficiais, como a Conitec. Criada pela Lei 12.401/2011, a Conitec é um órgão colegiado do Ministério da Saúde que fornece informações sobre a incorporação, a exclusão e a alteração pelo SUS de tecnologias em saúde, bem como na constituição e alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas.

Para o promotor, os juízes costumam seguir uma única prescrição médica, o que acontece na maioria das vezes. “Há muitas liminares em que a urgência simplesmente não existe. É importante verificar se realmente há risco de morte e se não há possibilidade de pedir mais informações a respeito daquela receita.”

Em 2013, Mapelli se licenciou do MP-SP e atuou no Poder Executivo como coordenador do Núcleo de Assuntos Jurídicos do gabinete do então secretário estadual da Saúde de São Paulo, Giovanni Cerri. Foi quando escreveu sua tese de doutorado, “Judicialização da saúde e políticas públicas”, que defendeu dois anos depois na Faculdade de Medicina da USP.

O trabalho apresenta um retrato das distorções provocadas pelas ações judiciais para fornecimento de medicamentos no estado de São Paulo entre 2010 e 2014. A tese mostra que 60% dos pacientes que acessam o Judiciário para pedir medicamentos são clientes de hospitais e clínicas privadas. “Normalmente são tratamentos de alto custo e os processos são ajuizados por advogados que cobram caro.”

A opinião dele vai ao encontro do que diz o ex-procurador-geral Elival da Silva Ramos. “A população mais humilde nem acesso ao Judiciário tem. Desviam-se recursos por meio dessas ações judiciais. Você tira dinheiro público para dar para uma pessoa que já tem recursos”, diz Mapelli. No entanto, o promotor ressalva que a Constituição não faz distinção de ricos e pobres, garantindo a todos o acesso à saúde pública. “Toda população perde saúde quando o interesse individual é colocado acima do coletivo”, resume.


Fonte: Conjur